Há poucos dias ouvi uma defesa
quase indignada de um acadêmico doutor em engenharia dizendo que advogado não é
doutor porque não fez doutorado, que esse costume indevido de chamar advogado
de doutor vinha de uma suposta cultura de dominação sobre os mais pobres e mais
uma porção de razões politicamente corretas que não me fazem bem ao estômago.
Embora a ocasião não tenha me
ofertado meios para os esclarecimentos necessários, creio conveniente
compartilhar com meus colegas de ofício os fundamentos de chamarmos os
advogados – e os médicos – de doutores.
Imagem de domínio público. Manuscrito medieval do meio do século XVI, mostrando uma reunião de doutores na Universidade de Paris |
Eu sei que vocês já devem
conhecer o decreto do imperador de 1º de agosto de 1827, que originou a lei do
império de 11 de agosto de 1827. A lei (que é curta e você pode ler na íntegra clicando aqui) não foi revogada, e como a lei não deixa de valer só porque
ficou velha, então ela vale e os advogados têm por lei o título de doutor.
De todo modo, como o povo mesmo,
aqueles politicamente corretos oprimidos do meu amigo engenheiro, nunca foi
muito dado à leitura de leis, nem agora e nem no império, é quase certo que o
costume geral (e inofensivo) de chamar não só advogados, mas também médicos, de
doutores, vem de algo anterior à lei de 1827.
O tratamento de doutor, bem como
a caracterização dos advogados e médicos como profissionais liberais, é um
resquício do sistema educacional vigente na idade média.
Naquele tempo, a educação formal
tinha como sua principal marca a liberdade: o estudante era livre para estudar
ou não estudar, porque a vontade de aprender era considerado pré-requisito para
a ocorrência de qualquer educação.
Quando o indivíduo decidia
estudar (ingressava-se na escola por volta dos 14 anos, já com discernimento e
vontade própria), ele ia estudar primeiro o trivium
(gramática, retórica e lógica), depois o quadrivium
(aritmética, música, geometria e astronomia), que juntos compunham o que se
chamava de as sete artes liberais, as sete artes que se estudava por livre
vontade e com total liberdade. O estudante que concluísse com êxito o estudo
das sete artes liberais (o que costumava ocorrer por volta dos 20 anos de
idade) recebia o título de mestre nas artes liberais.
Aquele dentre os mestres das
artes liberais que pudessem e quisessem poderiam então ingressar no estudo das
artes liberais superiores: direito, filosofia ou medicina.
Os que concluíssem com êxito o
estudo em qualquer das três artes liberais superiores recebiam o título de
doutor na referida arte de sua formação. Por isso, no medievo, os filósofos,
médicos e advogados eram chamados, justificadamente, de doutores.
As outras áreas de estudo, como
construção, arquitetura, engenharias não eram artes liberais, mas artes
“prisioneiras”, por assim dizer, porque seu ensino e posterior exercício era
controlado pelas corporações de ofício, as guildas, que ditavam desde a grade
curricular e vestimenta do estudante até o valor a ser cobrado pelo serviço
depois. Os arquitetos então, não estudavam artes liberais e não eram
profissionais liberais, porque não tinham na sua formação e nem no exercício do
seu ofício, a liberdade usufruída pelos médicos e advogados – doutores nas
artes liberais superiores e por isso profissionais liberais.
Embora o fundamento tenha ficado
esquecido e a realidade da formação e profissão do médico e do advogado moderno
seja muito diferente da idade média, o costume permaneceu e até hoje chamamos o
médico e o advogado de doutor.
Isso não quer dizer que o
tratamento tem a mesma validade do título acadêmico para fins legais, não vai
habilitar o advogado a prestar um concurso que exija a conclusão do doutorado
sem tê-lo cursado. Hoje, o doutor é mero pronome de tratamento, que não pode
ser exigido, nem precisa ser combatido. É apenas um resquício do medievo.
A lei de 1827 não foi revogada,
mas se um dia for, o advogado continua doutor (e o médico também).
Muito legal justificar um título colonialista por uma lei do século XIX. Parabéns pela coragem de continuar achando que seu amigo engenheiro estava certo.
ResponderExcluirO artigo não fez nada disso. Citou a lei que é de conhecimento de todos, mas explicou que o uso foi herdado de um costume do sistema de ensino medieval.
ExcluirPenso que o uso de títulos "honoríficos" ou de "alisamento do ego", quer provenham ou não provenham de uma "lei"(sic) como essa de "SUA EXCELÊNCIA D. PEDRO I", é algo completamente dispensável. Eu, pessoalmente, detesto ser chamado de "doutor", embora exerça a profissão de Advogado. E não é que eu apenas não aprecie o tratamento, a isso se acrescenta o fato de que eu simplesmente não me sinto e realmente não sou doutor, QUANDO SE CONSIDERA O SENTIDO PUJANTE DO VOCÁBULO (não fiz pós-graduação, não fiz doutorado, não tive e continuo não tendo interesse em fazer pós-gradução). Eu diria que até mesmo os magistrados, parlamentares, prefeitos e governadores não deveriam ser chamados de "Excelência", mas simplesmente pelo cargo ou função: SR. JUIZ (em vez de Excelentíssimo), SR. DEPUTADO (em vez de Excelentíssimo), SR. SENADOR (em vez de Excelentíssimo), SR. GOVERNADOR (em vez de Excelentíssimo), SR. PREFEITO (em vez de Excelentíssimo) etc. etc. etc. Numa audiência, por exemplo, o advogado poderia dirigir-se ao JUIZ como JUIZ e o JUIZ, por sua vez, dirigir-se-ia ao ADVOGADO como ADVOGADO. Num contato pessoal com o Governador, chamá-lo-íamos de GOVERNADOR. Numa carta endereçada ao Governador, diríamos apenas "ILUSTRE GOVERNADOR), numa carta ao Senador, diríamos apenas "ILUSTRE SENADOR" ou "SENADOR FULANO DE TAL" e assim por diante.
ResponderExcluirAi, ai. Acho que ninguém leu. Se não pode ler o artigo com atenção, para que se dar o trabalho de comentar?
ExcluirO autor apenas citou a lei do império, mas explicou (tentou, porque parece que ninguém entendeu) que chamamos o advogado e o médico de doutor como um costume herdado da época em que isso fazia sentido, no sistema educacional medieval.